av Ângela Linhares
170,-
O livro é qual um jogo africano antigo, vindo do território indiano, o mankala, que se pode dizer ser um jogo popular de semeaduras. Cada jogador ou personagem semeia no campo do outro, o que é uma metáfora do modo do amor acontecer no romance, que também se reporta ao esquecimento e às travessias que as linguagens percorrem no ofício de lembrar. Assim, mediante estranhamentos e cenas imprevisíveis, os personagens enfrentam a tarefa recomeçante da memória; é que estão como que acidentados pela deslembrança, uns; outros, pelo que no lembrar dificulta a tarefa de viver. De todo modo o romance ficciona as possibilidades dos recomeços, após campos e história em derrocadas, trazendo do amor, enquanto movimento de singularização na vida, acervos de alimento ao kalah - depósito símbolo do jogo de semear. O romance parte do momento em que o recomeço se dá, após a derrocada de extensa e inominável barragem, onde na artesania do sonho e do improvável cada personagem vai fazer suas sobreviventes semeaduras. As devastações sofridas por cada um remetem a processos de certo modo também políticos, e, ainda assim, qual o semear do mankala em jogo, os movimentos renascentes dos personagens dizem da potência de amar, vária em cada um deles. Carreando ao trecho mínimo o resguardo das sementes criollas para viver, dentre solitudes e duetos, margens e ensaios grupais, vê-se nos atos mais ínfimos o desígnio e desenho da resistência possível, bela e rica, paradoxalmente despojada de quase tudo o que fora construído como vida coletiva antes. Sem decifrações mais definidas sobre o lugar exato onde se passa a história ou o jogar das semeaduras, embora se saiba ser no múltiplo Brasil, há uma remessa que cada personagem traz, de seus troncos étnicos diversos, de modo que algumas marcas de processos civilizatórios vividos perduram. Muito embora o passado fique como fundo incorpóreo, ante o caráter recomeçante do viver e da memória, que agora conta com o invisível de modo incomum, falante e presente, a própria fundação do lugar como território amado chama a esperança utópica como música de atos. Os lugares: matinhos de caatinga arbórea quais interiores a descerrar sertões; restos de um porto e duna; mangue coleante e aquoso, onde se cata o que seria o comum; homens-ramagens, cujas vidas se dizem assubidas em árvores altíssimas, para dar conta das quedas de seres-coisas quais restos das barragens que não param de cair, um gueto de remanescentes quilombolas, um migrante português e uma índia reabrindo constantemente a cena da relembrança... vão compondo os arruados de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Quais contas de um fio que vai comunicar-se, a vida grupal se diz em cada recomeço, a gotejar sua urdidura de águas novas em torno de cada um dos personagens do romance. É assim que vicejam semeaduras reais e imaginadas, no jogo de resistir, depois das perdas do comum na vida coletiva. Ao lado da rolante enxurrada de corpos, planta e bicho e terra e águas, que continua ao largo, cada um dos personagens, invisíveis no campo do poder oficial, procura reconstruir o lugar e a si próprio, de modo minúsculo, como uma epopeia do gesto mínimo, dos atos eletivos que o esperançar pode tecer. Entre a arte e os desenhos minúsculos do amor, reacende-se o aprendizado de viver dentre devastações.